Psicologia da Educação I - Letras
Psicologia escolar e educacional: história, compromissos e perspectivas
Mitsuko Aparecida Makino Antunes
Abordar a história, os compromissos e as perspectivas da Psicologia Escolar e
Educacional significa tratar de três dimensões fundamentais de seu estatuto como área de
conhecimento articulada a um campo de prática social. A natureza dessa relação se
expressa, pelo menos, em duas dimensões: a psicologia educacional como um dos
fundamentos científicos da educação e da prática pedagógica e a psicologia escolar como
modalidade de atuação profissional que tem na escola e nas relações que aí se estabelecem
seu campo de ação. Dada a complexidade e a multiplicidade dessas questões, seu estudo
comporta um amplo espectro de focos possíveis, tornando necessária uma delimitação que
implica a opção por alguns caminhos em detrimento de outros, que podem ser abordados
em outras oportunidades.
Numa perspectiva mais ampla, poder-se-ia tratar a Psicologia Escolar e Educacional
por algumas de suas articulações mais antigas. A Grécia Antiga, entre outras civilizações,
constitui-se numa rica fonte de estudos, por sintetizar, em sua produção filosófica, teoria do
conhecimento, idéias psicológicas e propostas sistemáticas de educação da juventude e sua
correspondente ação pedagógica. É possível, nessa perspectiva, estudar Protágoras e os
sofistas, a escola pitagórica, Sócrates e a maiêutica, Platão e a Academia, Aristóteles e o
Liceu, entre muitos outros. Por esse mesmo foco é possível estudar o pensamento medieval,
em que filosofia/teologia, educação/pedagogia e idéias psicológicas permanecem
intimamente articuladas. A modernidade trará uma complexidade que amplia muito o
espectro de análise dessas relações, proporcionando um campo quase incomensurável de
estudos, que estende para a contemporaneidade suas determinações e nela se faz presente.
Em última análise, pode-se afirmar que a relação entre psicologia e educação, sobretudo em
suas mediações com as teorias de conhecimento, é algo que acompanha a própria história
do pensamento humano e constitui-se como complexo e extenso campo de estudo. Esta não
é a perspectiva que será aqui tratada, mas reiterá-la é necessário para indicar a
complexidade e a totalidade da qual faz parte o foco sob o qual a Psicologia Escolar e
Educacional será abordada neste texto, qual seja, a Psicologia Escolar e Educacional no
Brasil.
O presente texto compõe-se de uma discussão inicial sobre alguns pressupostos do
estatuto da Psicologia Escolar e Educacional, uma breve história das relações entre
psicologia e educação no Brasil e um ensaio sobre os compromissos e as perspectivas
colocadas para a construção de uma Psicologia Escolar e Educacional comprometida
socialmente com os interesses da maioria da população.
Estatuto da Psicologia Escolar e Educacional: alguns pressupostos
Essa discussão exige, antes de mais nada, a explicitação de alguns conceitos
presentes nos termos da expressão Psicologia Escolar e Educacional.
Entendemos educação como prática social humanizadora, intencional, cuja
finalidade é transmitir a cultura construída historicamente pela humanidade. O homem não
nasce humanizado, mas torna-se humano por seu pertencimento ao mundo histórico-social
e pela incorporação desse mundo em si mesmo, processo este para o qual concorre a
educação. A historicidade e a sociabilidade são constitutivas do ser humano; a educação é,
nesse processo, determinada e determinante.
A escola pode ser considerada como uma instituição gerada pelas necessidades
produzidas por sociedades que, por sua complexidade crescente, demandavam formação
específica de seus membros. A escola adotou ao longo da história diversas formas, em
função das necessidades a que teria que responder; tendo sido, em geral, destinada a uma
parcela privilegiada da população, a quem caberia desempenhar funções específicas,
articuladas aos interesses dominantes de uma dada sociedade. Essa realidade deve ser, no
entanto, compreendida também a partir de suas contradições, sobretudo a concepção de
escola como instância que se coloca hoje como uma das condições fundamentais para a
democratização e o estabelecimento da plena cidadania a todos, e que, embora não seja o
único, é certamente um dos fatores necessários e contingentes para a construção de uma
sociedade igualitária e justa. Sob essa perspectiva, a escola, tal como nós a concebemos,
tem como finalidade promover a universalização do acesso aos bens culturais produzidos
pela humanidade, criando condições para a aprendizagem e para o desenvolvimento de
todos os membros da sociedade.
A pedagogia pode ser entendida como fundamentação, sistematização e organização
da prática educativa. A preocupação pedagógica atravessa a história, sustentando-se em
diferentes concepções filosóficas, constituindo-se sob diversas bases teóricas e
estabelecendo várias proposições para a ação educativa. Com o desenvolvimento das
ciências a partir da modernidade, o conhecimento científico tornou-se sua principal base de
sustentação.
A Psicologia Educacional1 pode ser considerada como uma sub-área da psicologia,
o que pressupõe esta última como área de conhecimento. Entende-se área de conhecimento
como corpus sistemático e organizado de saberes produzidos de acordo com procedimentos
definidos, referentes a determinados fenômenos ou conjunto de fenômenos constituintes da
realidade, fundamentado em concepções ontológicas, epistemológicas, metodológicas e
éticas determinadas. Faz-se necessário, porém, considerar a diversidade de concepções,
abordagens e sistemas teóricos que constituem as várias produções de conhecimento,
particularmente no âmbito das ciências humanas, das quais a psicologia faz parte. Assim, a
psicologia da educação pode ser entendida como sub-área de conhecimento, que tem como
vocação a produção de saberes relativos ao fenômeno psicológico constituinte do processo
educativo.
A Psicologia Escolar, diferentemente, define-se pelo âmbito profissional e refere-se
a um campo de ação determinado, isto é, a escola e as relações que aí se estabelecem;
1 Muitas expressões são utilizadas, dentre as quais: Psicologia Educacional, Psicologia da Educação,
Psicologia na Educação e outras. Há implicações teóricas que subjazem à opção por uma ou outra
denominação, mas que não serão aqui tratadas, dada delimitação do presente texto
fundamenta sua atuação nos conhecimentos produzidos pela psicologia da educação, por
outras sub-áreas da psicologia e por outras áreas de conhecimento.
Deve-se, pois, sublinhar que psicologia educacional e psicologia escolar são
intrinsecamente relacionadas, mas não são idênticas, nem podem reduzir-se uma à outra,
guardando cada qual sua autonomia relativa. A primeira é uma área de conhecimento (ou
sub-área) e tem por finalidade produzir saberes sobre o fenômeno psicológico no processo
educativo. A outra constitui-se como campo de atuação profissional, realizando
intervenções no espaço escolar ou a ele relacionado, tendo como foco o fenômeno
psicológico, fundamentada em saberes produzidos, não só, mas principalmente, pela subárea
da psicologia, a psicologia da educação.
Relações entre Psicologia e Educação no Brasil: uma breve história
A história da Psicologia Escolar e Educacional no Brasil pode ser identificada desde
os tempos coloniais, quando preocupações com a educação e a pedagogia traziam em seu
bojo elaborações sobre o fenômeno psicológico. Massimi (1986; 1990), ao estudar obras
produzidas no período colonial, no âmbito da filosofia, moral, educação e medicina, entre
outras, identifica temas como: aprendizagem, desenvolvimento, função da família,
motivação, papel dos jogos, controle e manipulação do comportamento, formação da
personalidade, educação dos indígenas e da mulher, entre outros temas que, mais tarde,
tornaram-se objetos de estudo ou campos de ação da psicologia. É importante destacar que
a maioria desses escritos estava comprometida com os interesses metropolitanos e
expressava as mazelas de sua dominação na colônia. Entretanto, há contradições, sendo que
algumas dessas obras assumiram posições que se opunham aos ideais da metrópole, como a
defesa da educação feminina, entre outras. Além disso, várias obras não apenas trataram de
temas que viriam a ser próprios da psicologia, mas os trataram de maneira bastante original,
antecipando formulações que viriam a ser incorporadas pela psicologia do século XX.
No século XIX, idéias psicológicas articuladas à educação foram também
produzidas no interior de outras áreas de conhecimento, embora de maneira mais
institucionalizada. No campo da pedagogia, escolas normais (criadas a partir da década de
1830) foram espaços de discussão, ainda que incipientes e pouco sistemáticos, sobre a
criança e seu processo educativo, incluindo temas como aprendizagem, desenvolvimento,
ensino e outros. Em meados do século, essa preocupação torna-se mais sistemática e
freqüente e, nos anos finais desse mesmo século, é possível perceber a incorporação de
conteúdos que mais tarde viriam a ser considerados como objetos próprios da psicologia
educacional, com particular interesse por temas anteriormente estudados, como
aprendizagem e desenvolvimento, mas também por outros que já seriam considerados
expressões da psicologia do século XX, como a inteligência, por exemplo. Deve-se
destacar, no âmbito oficial, a Reforma Benjamin Constant, de 1890, que transformou a
disciplina filosofia em psicologia e lógica, que, por desdobramento, gerou mais tarde a
disciplina pedagogia e psicologia para o ensino normal. Data dessa época a introdução,
ainda que assistemática e pontual, do ideário escolanovista, que só mais tarde viria a se
tornar hegemônico no pensamento pedagógico e teria na psicologia seu principal
fundamento cientifico.
Os anos finais do século XIX e os primeiros anos do século seguinte trazem
mudanças profundas na sociedade brasileira: fortalecimento do pensamento liberal; busca
da “modernidade”; luta contra a hegemonia do modelo agrário-exportador, em direção ao
processo de industrialização. Essas novas idéias traziam em seu bojo um novo projeto de
sociedade, que exigia uma transformação radical da estrutura e da superestrutura social,
para o qual seria necessário um novo homem, cabendo à educação responsabilizar-se por
sua formação.
Nesse contexto, o debate sobre a educação tomou vulto, com a defesa da difusão da
escolaridade para a massa da população e uma maior sistematização das idéias
pedagógicas, com crescente influência dos princípios da Escola Nova. Assim, as escolas
normais passaram a ser o principal centro de propagação das novas idéias, baseadas nos
princípios escolanovistas, com vistas à formação dos novos professores, encarregando-se
do ensino, da produção de obras e do início de uma preocupação com a produção de
conhecimentos por meio dos então inaugurados laboratórios de psicologia, fatores estes que
deram as bases e que foram potencializados com as reformas estaduais de ensino
promovidas nos anos 1920.
Foi nesse quadro que ocorreu, paulatinamente, a conquista de autonomia da
psicologia como área especifica de conhecimento no Brasil, deixando de ser produzida no
interior de outras áreas do saber, sendo reconhecida como ciência autônoma e dando as
condições para que, por essa via, penetrassem os conhecimentos da psicologia que vinham
sendo produzidos na Europa e nos Estados Unidos.
Assim, percebe-se uma interdependência entre psicologia e educação, sobretudo
pela via da pedagogia, a partir da articulação entre saberes teóricos e prática pedagógica.
Pode-se afirmar que o processo pelo qual a psicologia conquistou sua autonomia como área
de saber e o incremento do debate educacional e pedagógico nas primeiras décadas do
século XX estão intimamente relacionados, de tal maneira que é possível afirmar que
psicologia e educação são, historicamente, no Brasil, mutuamente constituintes uma da
outra. Esse momento foi responsável pela consolidação da articulação entre psicologia e
educação, dando as bases para a penetração e a consolidação daquilo que nos Estados
Unidos e Europa já se desenvolvia sob a denominação de psicologia educacional.
O período seguinte, pós 1930, caracteriza-se pela consolidação da psicologia no
Brasil e tem como base a estreita relação estabelecida entre essa área e a educação. Os
campos de atuação da psicologia que se desenvolveram a partir dessa época, tornando-se
campos tradicionais da profissão, como a atuação clínica e a intervenção sobre a
organização do trabalho, tiveram suas raízes na educação, respectivamente pela criação dos
Serviços de Orientação Infantil nas Diretorias de Educação do Rio de Janeiro e de São
Paulo e da Clínica do Instituto Sedes Sapientiae, com a finalidade de atender crianças com
dificuldades escolares, e pela Orientação Profissional, dentre outras ações educacionais, no
campo do trabalho.
Ao mesmo tempo, o ensino formal de psicologia em cursos superiores tinha estreita
articulação com a educação, pois as cátedras de psicologia estavam vinculadas
primordialmente aos cursos de filosofia e de pedagogia, nestes últimos sob a denominação
de psicologia educacional.
Muitos foram os trabalhos realizados pela psicologia no âmbito da educação, dentre
os quais: Serviço de Psicologia Aplicada do Instituto Pedagógico da Diretoria de Ensino de
São Paulo; Sociedade Pestalozzi de Minas Gerais e, posteriormente, Sociedade Pestalozzi
do Brasil; “Escola para Anormais” em Recife; atividades realizadas no INEP,
particularmente com a utilização de testes psicológicos; a criação das Clínicas de
Orientação Infantil; o trabalho desenvolvido por Helena Antipoff na Escola de
Aperfeiçoamento de Professores e na Fazenda do Rosário; Instituto de Seleção e Orientação
Profissional – ISOP-FGV; além dos trabalhos desenvolvidos por Ana Maria Poppovic com
“crianças abandonadas” no Abrigo Social de Menores da Secretaria de Bem-Estar Social do
Município de São Paulo; a fundação do Instituto de Psicologia da PUCSP, oferecendo
serviços de medidas escolares, pedagogia terapêutica e orientação psicopedagógica; além
das muitas instituições estritamente educacionais que desenvolviam trabalhos relacionados
à Psicologia.
Pode-se dizer que a Educação continuou sendo a base para o desenvolvimento da
psicologia, assim como esta permaneceu como principal fundamento para a educação,
particularmente no âmbito pedagógico, como sustentação teórica da Didática e da
Metodologia de Ensino, bases para a formação de professores. Essa tendência se expressa
em experiências realizadas pela Escola Experimental da Lapa e pelos Ginásios Vocacionais
em São Paulo, dentre outras inúmeras experiências, realizadas em todo o país.
Concomitantemente, o ensino nas Escolas Normais e nos Cursos de Pedagogia
continuavam dando à Psicologia espaço privilegiado em seus currículos.
O desenvolvimento da pesquisa também ganha impulso, tendo como referência
algumas instituições, como o Instituto de Educação do Rio de Janeiro; Escola de
Aperfeiçoamento de Professores de Belo Horizonte; Instituto de Seleção e Orientação
Profissional de Recife; Laboratório de Psicologia Educacional do Instituto de Educação
(evolução do Instituto Pedagógico de São Paulo); Núcleo de Pesquisas Educacionais da
Municipalidade do Rio de Janeiro; Instituto Nacional de Surdos-mudos e o Centro
Brasileiro de Pesquisas Educacionais – CBPE – e seus correlatos, os Centros Regionais de
Pesquisas Educacionais – CRPE; além da produção de escolas normais e universidades.
Nesse contexto, começam a se diferenciar, ainda que de forma não sistemática e
formal, a psicologia educacional, como conjunto de saberes que pretende explicar e
subsidiar a prática pedagógica, sendo, portanto, de domínio necessário para todos os
educadores, e a psicologia escolar, como campo de atuação de profissionais da psicologia
que atuariam no âmbito da escola, desempenhando uma função especifica, calcada na
psicologia e que se caracterizou inicialmente por adotar o modelo clínico de intervenção.
Embora contradições possam ser apontadas, revelando produções teóricas e práticas
afinadas com a construção de uma escola comprometida com a aprendizagem e o
desenvolvimento de seus alunos, particularmente aqueles oriundos das camadas populares,
o papel que a psicologia desempenhou na educação tornou-se objeto de crítica. A utilização
e a interpretação indiscriminadas e aligeiradas de teorias e técnicas psicológicas, como os
testes (principalmente os de nível mental e de prontidão); a responsabilização da criança e
de sua família, em nome de problemas ditos de “ordem emocional”, para justificar o
desempenho do aluno na escola e a redução dos processos pedagógicos aos fatores de
natureza psicológica colaboraram para interpretações e práticas pedagógicas no mínimo
equivocadas, desprezando o processo educativo como totalidade multideterminada,
relegando a segundo plano, ou omitindo, fatores de natureza histórica, social, cultural,
política, econômica e, sobretudo, pedagógica na determinação do processo educativo.
Esse processo culmina, em 1962, com a regulamentação da profissão de psicólogo e
o estabelecimento de cursos específicos para sua formação. As ações desenvolvidas no
período anterior deram as bases para os campos tradicionais de atuação da psicologia:
educação, clínica e trabalho.
Um fato interessante a ser mencionado é que, justamente com a regulamentação da
profissão, o campo da educação, antes base principal para o desenvolvimento da psicologia
no Brasil, torna-se secundário na preocupação dos profissionais da área. Isso se revela não
apenas no âmbito curricular, mas, sobretudo, na preferência de alunos e profissionais pelos
campos da clínica e da organização do trabalho. Esse é também um dos fatores explicativos
para a adoção de uma modalidade clínico-terapêutica na ação da psicologia escolar, tendo
como base o modelo médico, questão que será discutida adiante.
Entretanto, as relações entre educação e psicologia vão se diferenciando, como já
foi dito, com a área da psicologia educacional, foco de interesse tanto de pedagogos como
de psicólogos, e o campo da psicologia escolar, como atributo específico do profissional da
psicologia que atua no espaço escolar. O conhecimento psicológico estava incorporado à
Pedagogia e à prática dos educadores e a atuação do psicólogo escolar adotava um modelo
cada vez mais clínico-terapêutico, agindo fora da sala de aula, focando sua atenção na
dimensão individual do educando e em seus “problemas”, atendendo, sobretudo, demandas
específicas da escola, que encaminhava as crianças que tinham, a seu ver, “problemas de
aprendizagem” ou outras manifestações consideradas como “distúrbios” inerentes ao
próprio educando.
Pode-se falar que esse período herdou do período anterior o que pode ser
interpretado como hipertrofia da psicologia na educação, numa tendência reducionista, que
passou, na década de 1970, a ser criticada tanto por pedagogos como por psicólogos.
Criticava-se a utilização dos testes e a interpretação de seus resultados, que atribuía ao
aluno a determinação de seus “problemas”, desconsiderando as condições pedagógicas; o
encaminhamento de alunos com deficiência que, sob a justificativa de lhes proporcionar
uma “educação especial”, relegava-os a condições aligeiradas de ensino e sem solução de
continuidade, reforçando estigmas e preconceitos e produzindo social e pedagogicamente a
deficiência mental; as interpretações e ações supostamente fundamentadas na psicologia,
por educadores e psicólogos, calcadas em fatores como: atraso no desenvolvimento,
distúrbios de atenção, motores ou emocionais (estes em geral relacionados estritamente às
condições intrínsecas da criança ou da família). Uma das conseqüências apontadas por
essas críticas era a desconsideração dos determinantes de natureza social, cultural,
econômica e, sobretudo, pedagógica; daí falar-se em reducionismo.
Alguns psicólogos escolares e pesquisadores da área começaram, nessa época, a
elaborar uma crítica radical à Psicologia Escolar e Educacional, com base em argumentos
semelhantes aos apontados por pedagogos e educadores em geral. De um lado, criticava-se
a já apontada hipertrofia da psicologia na educação e o reducionismo dos fatores
educacionais e pedagógicos às interpretações psicologizantes. Por outro lado, enfocando
mais especificamente a prática da psicologia escolar e aprofundando a crítica a seu modo de
ação, avançavam para a demonstração de que o enquadramento clínico-terapêutico
baseava-se num modelo médico, estranho às determinações pedagógicas, que tendia a
patologizar e individualizar o processo educativo, distanciando-se da compreensão efetiva
dos determinantes desse processo e desconsiderando ações então denominadas preventivas,
que deveriam voltar-se para as condições mais propriamente pedagógicas, de forma a atuar
mais coletivamente, com base naquilo que hoje seria denominado de interdisciplinaridade,
com os demais profissionais da educação e da escola. Alguns dos focos possíveis de
atuação eram apontados, naquela época, em direção à formação de professores, à
intervenção no âmbito das relações escola-família-comunidade, ao processo grupal
estabelecido na instituição escolar, dentre outros. Particular preocupação entre psicólogos
escolares incidia sobre os índices de reprovação na então 1ª. série do 1º. Grau, que
mostravam que mais da metade dos alunos ficava retida nessa série, muitas vezes na
condição de alunos multi-repetentes, culminando com o abandono da escola, processo este
que atingia fundamentalmente alunos oriundos das classes populares. Esse fato levou
muitos profissionais da psicologia a se interessar pela alfabetização em especial e, de
maneira mais ampla, pela articulação mais estreita entre os conhecimentos produzidos pela
psicologia e aqueles produzidos por outras áreas de saber, principalmente a sociologia da
educação, uma vez que a questão relativa à relação entre desempenho escolar e condições
sócio-econômicas ganhava espaço nos debates educacionais.
Entretanto, poucos trabalhos conseguiram efetivar esse modelo de atuação,
comprometido com o processo pedagógico, em decorrência principalmente da expectativa
da escola, cristalizada na modalidade clínica de psicologia, pautada no encaminhamento do
aluno para que ele fosse “curado” fora do espaço da sala de aula e depois devolvido “sem
problemas”, tirando da escola a responsabilidade da ação sobre a educação da criança.
Foram, porém, esses poucos trabalhos, muitas vezes pautados na desconstrução dessas
expectativas da escola, que deram as bases para a superação daquela psicologia escolar
clínico-terapêutica, na direção de uma psicologia que pode ser denominada efetivamente
como escolar, delimitando seu campo de atuação e criando uma modalidade de trabalho
efetivamente comprometida com o cotidiano da escola em sua função essencialmente
pedagógica.
Nesse sentido, a superação dessa situação exigia não somente a crítica à hipertrofia
da psicologia na educação, ao reducionismo, às interpretações aligeiradas e banalizadas, às
ações fundadas num modelo estranho à educação, como o modelo médico, e à
culpabilização da criança e de sua família, mas também a restituição de seu núcleo de bom
senso. Fazia-se necessário devolver à psicologia seu lugar no processo pedagógico.
É necessário, pois, que se considere que o processo educativo ocorre no âmbito do
sujeito; assim, a dimensão psicológica não pode ser negada, mas incorporada na apreensão
do fenômeno em sua totalidade, condição fundamental para a produção de conhecimento
nesse campo, responsabilidade da psicologia educacional. Esta, por sua vez, deve
fundamentar, naquilo que lhe cabe, a compreensão do fenômeno educativo e dar base para
o estabelecimento de processos efetivos de intervenção, que poderiam constituir-se na
matriz de atuação do psicólogo escolar.
Dessas considerações parte-se agora para um ensaio que visa discutir possibilidades
e limites para a construção de uma Psicologia Escolar e Educacional, sob o foco de seus
compromissos e perspectivas.
Compromissos e Perspectivas para a Psicologia Escolar e Educacional
É condição para a discussão de compromissos, assim como das perspectivas que se
colocam a partir deles, a explicitação do lugar a partir do qual se fala. Compromisso
implica três instâncias: aquele que se compromete (neste caso, referimo-nos à Psicologia
Escolar e Educacional), aquele com quem se compromete (as classes populares) e aquilo
com que se compromete (a construção de uma educação democrática). Trata-se, portanto,
de discutir o compromisso da Psicologia Escolar e Educacional com a educação das classes
populares, o que torna necessário expor a concepção de educação que dá base à posição
aqui defendida.
A educação que aqui se afirma é uma educação rigorosa e amplamente
democrática, que deve ser acessível a todos e que não transige na defesa desse princípio. É
concebida como instância social responsável pela tarefa de socialização dos conhecimentos
produzidos pela humanidade ao longo de sua história, criando condições para que todos
possam ascender do senso-comum aos saberes fundamentados, articulados e sintéticos
sobre o mundo. Educação democrática significa, portanto, democratização de saberes;
saberes estes que foram historicamente privilégios – na produção e no acesso – das classes
dominantes. Para que ela se realize em cada sujeito, é necessário garantir o domínio de
recursos necessários para a apreensão do conhecimento, como o domínio da leitura e da
escrita, da matemática e de outros recursos próprios da contemporaneidade, como
informática e línguas estrangeiras. Isso, entretanto, constitui-se tão somente o ponto de
partida, pois são apenas os meios necessários para a aquisição de outros conhecimentos,
que devem ser considerados em todas as suas expressões, da filosofia à ciência e às artes,
em permanente diálogo com a cultura própria da criança, que deve ser respeitada e
considerada no processo de ensino-aprendizagem. Disso decorre uma concepção de prática
pedagógica centrada nos processos de ensino e aprendizagem, cuja finalidade é propiciar o
desenvolvimento pleno do educando, em todos os aspectos que o constitui como sujeito
singular e, ao mesmo tempo, pertencente ao gênero humano.
Essa concepção de educação remete ao compromisso com a concretização de
políticas públicas de educação radicalmente comprometidas com os interesses das classes
populares. Isso significa garantir pleno acesso e condições de permanência de todos os
educandos na escola, independentemente de suas condições, cabendo à escola transformarse
para possibilitar-lhes condições efetivas de escolarização; essa questão traduz o princípio
de educação inclusiva, que incorpora não só a educação de alunos com deficiência, mas
todos aqueles que, por diversos motivos, são alijados da escola e de seus bens. Para isso,
faz-se necessário que se construam currículos articulados às finalidades acima expostas,
superando os conhecidos “currículos mínimos”, geralmente entendidos como paliativos ou
educação de segunda categoria para pessoas socialmente consideradas também como tal,
com especial atenção aos processos avaliativos, um dos meios mais efetivos para a
materialização da exclusão de crianças das classes populares ao direito de uma educação de
boa qualidade. Esse processo depende também da gestão democrática da escola e,
sobretudo, no investimento maciço na formação dos educadores.
Cabe, portanto, discutir as possibilidades e limites da Psicologia Escolar e
Educacional na construção de políticas públicas de educação comprometidas socialmente
com as classes populares; eis aqui a questão relativa às perspectivas colocadas para essa
área de conhecimento e campo de atuação.
Disso resulta a afirmação de alguns princípios que podem ser expressos a partir das
assertivas que seguem.
A educação é constituída por múltiplos determinantes, dentre os quais os fatores de
ordem psicológica; portanto, a psicologia tem contribuição para a Educação.
Que seja uma psicologia capaz de compreender o processo ensino-aprendizagem e
sua articulação com o desenvolvimento, fundamentada na concreticidade humana
(determinações sócio-históricas), compreendida a partir das categorias totalidade,
contradição, mediação e superação. Deve fornecer categorias teóricas e conceitos que
permitam a compreensão dos processos psicológicos que constituem o sujeito do processo
educativo e são necessários para a efetivação da ação pedagógica.
A psicologia deve assumir seu lugar como um dos fundamentos da educação e da
prática pedagógica, contribuindo para a compreensão dos fatores presentes no processo
educativo a partir de mediações teóricas “fortes”, com garantia de estabelecimento de
relação indissolúvel entre teoria e prática pedagógica cotidiana.
Esta psicologia deve propiciar a compreensão do educando a partir da perspectiva
de classe e em suas condições concretas de vida, condição necessária para se construir uma
prática pedagógica realmente inclusiva e transformadora. A psicologia como um dos
fundamentos do processo formativo do educador deve propiciar o reconhecimento do
educador/professor como sujeito do processo educativo, traduzindo-se na necessidade de
mudanças profundas das políticas de formação inicial e continuada desse protagonista
fundamental da educação.
Por sua vez, a ação do psicólogo escolar deve pautar-se no domínio do referencial
teórico da psicologia necessário à educação, mediatizado necessariamente por
conhecimentos que são próprios do campo educativo e das áreas de conhecimento
correlatas. O próprio referencial teórico que aqui defendemos implica o trânsito por outros
saberes (totalidade). Daí, a necessidade de superação das práticas tradicionais do psicólogo
escolar, muitas vezes pautadas ainda numa perspectiva, nem sempre consciente ou
assumida, de ação clínico-terapêutica.
Em outras palavras, afirmamos uma psicologia escolar comprometida radicalmente
com a educação das classes populares, que supere o modelo clínico-terapêutico disfarçado e
dissimulado ainda presente na representação que o psicólogo tem de sua própria ação,
entendendo que a representação e, consequentemente, as expectativas que os demais
profissionais da educação têm da psicologia só serão superadas pela própria prática do
psicólogo escolar.
Mudanças efetivas só ocorrerão a partir do envolvimento do psicólogo com as
questões concretas da educação e da prática pedagógica; é necessário superar o preconceito
de não querer tornar-se “pedagogo”. O psicólogo não é pedagogo, mas se quiser trabalhar
com educação terá que mergulhar nessa realidade como alguém que faz parte dela,
reconhecendo-se como portador de um conhecimento que pode e deve ser socializado com
os demais educadores, tanto no trabalho interdisciplinar, como na formação de educadores,
sobretudo professores; que detém um saber que pode contribuir com os processos sócioinstitucionais
da escola; tem um conhecimento específico que pode e deve reconhecer o que
é próprio de sua formação profissional, e, ouso afirmar, algumas vezes inclusive de caráter
clínico-terapêutico, voltado para casos individuais; possui ou pode desenvolver
conhecimentos importantes para a gestão de sistemas e redes de ensino, sobretudo no
âmbito de diagnósticos educacionais (avaliação institucional, docente, discente etc.) e na
intervenção sobre tais resultados.
Considerações Finais
As questões aqui expostas constituem-se em elaborações também situadas num
dado momento histórico e numa dada perspectiva teórica e consequentemente política, que
reflete concepções de homem, sociedade, educação, psicologia e, sobretudo, de Psicologia
Escolar e Educacional circunscritas. Isso significa que esta é uma dentre muitas posições
acerca dessa área de conhecimento e campo de práticas. É, portanto, importante que se
estabeleça um amplo diálogo entre posições e perspectivas, que permitam o avanço dessa
área de saber e o aperfeiçoamento das práticas a ela correlatas.
Entretanto, há dois aspectos que devem ser considerados nessa discussão e que se
remetem a aspectos cujas qualidades são muito distintas, mas que devem fazer-se
invariavelmente presentes.
A primeira questão diz respeito à possibilidade de inserção do psicólogo escolar em
seu campo. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional proíbe deduzir dos 25% dos
orçamentos públicos os salários de profissionais responsáveis por “atendimento médico,
odontológico, psicológico e fonoaudiológico”. Isso parece impedir, numa primeira leitura, a
presença do psicólogo nesse campo sobre o qual incide toda nossa discussão. É preciso, no
entanto, que se analise mais profundamente o texto da lei e os significados a ele
subjacentes, cotejando-os com as questões aqui abordadas.
É compreensível e aceitável essa prescrição legal, pois, pela maneira como está
colocado o serviço psicológico, deduz-se que a concepção que lhe dá base carrega a noção
de atendimento clínico-terapêutico, de incidência individual e apartada das questões
propriamente escolares. De um lado, a palavra utilizada é “atendimento”, termo este já
tradicionalmente relacionado a um modelo médico; por outro lado, e corroborando essa
interpretação, o “psicológico” é acompanhado de “médico”, “odontológico” e, na esteira da
própria concepção de psicologia aí expressa, de “fonoaudiológico”. Dada nossa concepção
de Psicologia Escolar e Educacional, pode-se dizer que a psicologia a que a lei se refere não
é esta que defendemos.
Essa análise demonstra que se essa atuação da psicologia não é reconhecida pela
LDB como ação própria da educação, do que não discordamos, há por outro lado, uma
atuação que pode ser considerada como de caráter eminentemente educacional e que tem
sua prática pautada na instituição escolar e nas demandas a ela inerentes. Com base nessa
consideração, impõe-se uma discussão a respeito dessa questão, que deve subsidiar o
esclarecimento aos órgãos direta e indiretamente relacionados a essa prescrição legal, além
de um encaminhamento mais direto, com vistas à defesa da inserção de uma determinada
prática que pode contribuir com a melhoria da educação brasileira, não como reivindicação
motivada por interesses corporativistas, mas como concretização de uma luta cujo motivo
primeiro é seu compromisso radical com a educação das classes populares.
A derradeira questão é de natureza ética e, sob um determinado foco, pode ser
exemplificada pelo problema acima discutido. Devemos invariavelmente pautar toda e
qualquer discussão sobre a Psicologia em geral e sobre a Psicologia Escolar e Educacional
em especial sobre a questão ética, entendendo-a não como prescrição de normas, nem como
tema da moda, mas como ética social, que se questiona e que se pergunta constantemente
sobre o que fazemos, para quem, com que finalidade e a que interesses servimos.
Este é o ponto a partir do qual se deve retornar ao início dessa discussão. A história
demonstra pactos entre psicologia, educação e sociedade que penderam parainteresses
contraditórios e opostos, na maioria das vezes em contraposição aos direitos das classes
populares. Da compreensão desse processo, podemos nos lançar de maneira mais efetiva à
construção de uma Psicologia Escolar e Educacional comprometida de fato com uma
educação democrática, submetida aos interesses dessas classes. Este é, por sua vez, o
compromisso que define e determina as perspectivas que estão postas para essa área de
conhecimento e campo de atuação do psicólogo.
Referências
Antunes, M. A. M. (2003) A psicologia no Brasil: leitura histórica de sua constituição. São
Paulo, EDUC e Ed. Unimarco.
Massimi, M. (1987) As origens da psicologia brasileira em obras do período colonial, in:
História da Psicologia. São Paulo, EDUC, Série Cadernos PUC-SP, n. 23, pp. 95-117.
__________. História da psicologia brasileira. São Paulo, EPU, 1990.
Meira, M. E. M. e Antunes, M. A. M. (2003) Psicologia escolar: teorias críticas. São
Paulo, Casa do Psicólogo.
________________________________. (2003) Psicologia escolar: práticas críticas. São
Paulo, Casa do Psicólogo, 2003.
Endereço para correspondência
Rua Monte Alegre, 984
Perdizes - São Paulo - SP
CEP: 05014-901
Fone: (11) 3670-8000
Email: pedpos@pucsp.br
Notas
i Artigo originalmente apresentado no VIII Congresso Nacional de Psicologia Escolar e
Educacional – CONPE realizado em Minas Gerais, São João del Rei, na Universidade
Federal de São João del-Rei – UFSJ.
2Doutora em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo